Refresco de carambola

Tradução do Beatriz Cannabrava, Revista Diálogos do Sul

Nos primeiros anos, Filomena anotava em espanhol em uma livreta e com um tradutor inglês-espanhol traduzia a lista para comprar no supermercado, tudo para comida kosher. Em sua natal Sibaná, El Asintal, Retalhuleu, Guatemala, jamais ouvir falar da religião judaica e muito menos de comida kosher, foi em Chicago em seu primeiro trabalho que descobriu esse mundo de alimentos e rituais tão estranhos. 

Ao princípio lhe pareciam manhas de gringos, como a dos evangélicos com seus alto-falantes a todo o volume em sua aldeia nos domingos de culto e o montão de “cucuruchos” [1]bem santos carregando as  procissões para Semana Santa, pero maltratavam suas esposas em sua casa. Comida kosher, dizia Filomena, mas bem tacanhos para pagar aos trabalhadores um salário justo. 

Filomena nesse trabalho tinha que dançar num pé só: limpar a casa, lavar a roupa, aprontar as crianças para ir à escola e cozinhar comida kosher, crianças às quais amou e cuidou como se ela as houvesse parido, mas que se envergonhavam dela, da empregada guatemalteca que mal falava inglês. Filomena conheceu essa dor tão crua sendo migrante, que era a mesma dor da maioria das empregadas domésticas e babás que cuidavam e tratavam como próprias as crianças de onde trabalhavam.  

Ao princípio tudo foi estranho, Estados Unidos era outro mundo, enormes autopistas, trens, edifícios altíssimos, parques por todos lados, piscinas públicas a mais não poder. Depois de trinta anos vivendo no país, Filomena continua se surpreendendo com a quantidade de rostos tão diferentes que vê todos os dias quando vai em trem para seu trabalho, lhe maravilha ver pessoas de todas as partes do mundo e que falam idiomas tão distintos. 

Não aprendeu a guiar porque em trinta anos o dinheiro de seu trabalho o envia semanalmente para sua família, a princípio para seus pais e os cinco filhos que deixou, no presente é para os filhos e os netos, a todos os filhos lhes comprou casa e as mobiliou. Três vezes por ano lhes envia encomendas nas que se desvive enchendo as caixas de roupa, sapatos, brinquedos, eletrodomésticos e tudo que queiram seus filhos e netos que lhe enviam listas com os pedidos. 

A última vez que recebeu um telefonema pelo Dia das Mães foi há dez anos, de um só de seus filhos, a Filomena lhe dói, mas se culpa porque ela os deixou para ir trabalhar nos Estados Unidos e pensa que não tem direito a exigir-lhes nem sequer uma chamada telefônica. De seu aniversário deixaram de lembrar há muitos anos, no Natal é ela que chama. 

Recém chegada teve a oportunidade de casar-se com um imigrante libanês que trabalhava em uma padaria kosher, ele com quarenta e cinco, ela com vinte e seis, mas disse que não porque não queria pôr um padrasto para seus filhos; com cinquenta seis anos e trinta vivendo indocumentada, Filomena se arrepende de não ter se casado com o libanês, talvez teria tido uma casa com um jardim e não moraria em um apartamento em Chicago com mais sete migrantes centro-americanos.

O teria levado a Guatemala para conhecer a manga de lá e os pequenos sapotís. Talvez teria conhecido o Líbano e a comida de lá, diz a si mesmo quando os pensamentos a entretém enquanto está atarefada dobrando roupa em seu trabalho. Quando as dores das veias inflamadas lhe fazem chorar pensa que teria podido ter um seguro médico ao que não têm acesso os indocumentados. Se desmonta a cabeça em pensamentos do teria, teria tido esse homem por companheiro de vida porque gostava dele, não dos outros bêbados que a convidavam para sair. 

Filomena sempre sonhou com um jardim, por isso quando comprou as casas para seus filhos em um setor exclusivo de Retalhuleu se garantiu de que tivessem terreno de sobra para um jardim de plantas tropicais. Mora no terceiro andar de um edifício que em tempo de inverno as escadas ficam escorregadias quando baixam as temperaturas e a neve se converte em gelo negro, durante essa estação é quando Filomena mais tem saudades da vegetação tropical e do clima de sua natal Sibaná.

Nas noites tem um segundo trabalho remendando roupa para uma lavanderia, dorme apenas quatro horas por dia, com o que ganha aí paga o aluguel e os gastos de sua alimentação, mas não perde a esperança de que dia possa sair desse apartamento e comprar uma casa com um jardim. No verão plantaria tomates, coentro, hortelã, pimenta doce, algumas árvores e sentaria à sombra de uma delas a tomar um refresco de carambola, como tomava em sua infância recostada na rede debaixo da mangueira. Como utopia não perde a esperança de que um dia cheguem seus filhos e netos a visitá-la, imagina a todos comendo em família, lhes apresentaria o libanês que continua trabalhando na padaria kosher e sua esposa salvadorenha, sua única família em Estados Unidos. 


  1. Na Guatemala homens que vestem uma roupa especial para participar da procissão da Semana Santa.

 

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Ilka Oliva-Corado @ilkaolivacorado

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