Tradução do Beatriz Cannabrava, Revista Diálogos do Sul
Vovó, e falando de Comapa, a senhora sabe como se fazem as “semitas”? perguntei para minha avó depois de 17 anos na diáspora, e até eu me surpreendi. Como é possível, negra, me disse, que não tenha perguntado antes a receita das “semitas” de sua avó? Vovó começou a me ditar os ingredientes das “semitas”, do pão de arroz, das queijadinhas e das “salporas”. Peguei uma folha de papel e anotei. Vai experimentando o açúcar, me disse, e vai provando a cada pouco e aí você vai pondo mais se precisar. Tantos ovos por tal quantidade de farinha, igual a margarina, a água de canela e o leite. Há quem ponha isto e outros ingredientes, mas eu gosto de tal forma, e você poderá fazer do seu estilo.
Foi também minha avó que me ensinou a fazer tortas e entender os sinais do fogo, porque o fogo avisa. Por exemplo, quando vai chegar visita se alvoroça e é aquele fogaréu. Assim foi como naquela vez que ela soube que eu chegaria para um dia de visita e quando apareci a encontrei assando na cozinha e meu avô parado, apoiado na porta; o som de suas mãos sovando a massa se escutava até a loja de dona Adelona. Ela me disse quando me viu cruzar o caminho das pedras: ingrata, o fogo me estava avisando a manhã inteira que você vinha. Não se surpreendeu ao me ver.
Nesse tempo, para avisar que estava chegando tinha que chamar por telefone a única senhora que tinha telefone no povoado, esperar que fossem avisar que tinha uma chamada ou voltar a chamar depois de uma hora para saber se a tinham encontrado e podia atender o telefonema. Também era da mesma forma em Peronia, na minha infância. Quanto tive que ir para a entrevista do meu primeiro trabalho, como professora de Educação Física, também dei o número de telefone de uma vizinha, e aí me chamaram para dizer que estava contratada, me deixaram uma mensagem que haviam chamado de tal lugar e que voltariam a chamar a tal hora porque necessitavam falar comigo. Hoje, hoje são outros tempos, é uma coisa diferente…
Mas quando minha avó era jovem, não havia ônibus e tinha que sair do povoado em lombo de burro e a pé. Levassem o que levassem, assim eram aquelas grandes peregrinações de camponeses nas sendas à borda dos barrancos, com suas cargas de milho, de feijão, suas cargas de lenha, para chegar às cidades para vendê-las ou trocá-las por outros alimentos de primeira necessidade. O famoso escambo.
As conversas com minha avó giram em torno ao seu povoado, de quando era jovem, porque eu tenho uma necessidade de cultivar a memória do cordão umbilical, da raiz, mas também de conhecê-la como mulher, além de ser minha avó. Fico encantada ouvindo-a narrar a vida de outros tempos, por exemplo: no tempo de Ubico as pessoas não podiam matar suas próprias vacas e tinham que pedir licença ao governo; então ela conta que as pessoas iam aos campos e passavam por lá três dias, matando a res e pondo a carne para secar, que deixavam escondida entre pedras para que não fossem comidas pelos animais e iam subindo aos poucos às aldeias porque se as autoridades soubessem, era a prisão.
Depois, no tempo da ditadura, que passavam guerrilheiros e soldados pedindo comida; só que os guerrilheiros batiam na porta e pediam por favor e os soldados derrubavam as portas e levavam tudo, até as penas das galinhas. E então deixavam o povoado sem seus sacos de milho e feijão para passar os meses em que não havia colheita.
Que os porquinhos também os levavam, ou que dependendo da urgência faziam que as mulheres cozinhassem para eles ali mesmo. E talvez, esses porquinhos fossem a forma de economizar de uma família, que os engordavam o ano inteiro para vendê-los no Natal e assim poder comprar sapatos, pano para fazer roupa, mas os soldados não deixavam nada. E isso foi tão duro no oriente como no ocidente.
Conheci as amigas de infância da minha avó e quando umas não podiam ir ao moinho, as outras regressavam com a massa feita. Sem dizer nada, uma comunicação da alma, que só existe nas aldeias, na geração dos mais velhos. E igual faziam com as tinas de água. Nunca vi uma solidariedade tão autêntica.
Quando minha avó era menina as águas do rio Paz eram mares, hoje o rio é um caminhãozinho desnutrido que passa no inverno e que no verão é um deserto de pedras. Como a quebrada. Eram os grandes bosques e se podiam deixar as portas abertas de par em par que não acontecia nada. Para sua adolescência começaram a aparecer os ladrões que roubavam a cabeças de gado dos endinheirados; hoje em dia, os bandos criminosos roubam tudo à sua passagem. O povoado já não é o que era. O mundo tampouco.
Com suas histórias soube do coalho da vaca para fazer queijo, que no nosso tempo eram as pastilhas para coalhar. De como faziam o sabão de sebo para tomar banho. Quando escuto minha vó falar me adentro aos personagens de Juan Rulfo; os mais velhos em Comapa falam como os personagens de Rulfo; até parece que é o mesmo povoado, por isso me maravilham os textos de Rulfo porque volto uma e outra vez a minha Comapa natal, a conversar com meu avô, sentados os dois entre os pés de café.
Minha avó tem uma memória extraordinária e sua forma de narrar foi herdada pelas minhas tias, que ela herdou de Mamita, sua mãe. Cresci escutando histórias de Comapa todos os dias, me enamorei de Comapa através delas.
Das histórias do meu avô, que entre eles não há diferença de gênero porque as mulheres eram tão fortes que o trabalho dos homens era feito por elas ombro a ombro com meu avô. Por isso meu avô não se surpreendeu quando eu saí com a ideia de que gostava de futebol em vez de basquete ou que não gostava de bonecas.
Ele ria quando me olhava rachando lenha, ou quando agarrava seu facão e ia com ele ao campo cortar lenha. Foi meu avô que me ensinou a fazer adobes. Mas o que ele mais gostava era que me via nas brigas de rua, trombada a trombada com os moleques; minha avó ficava aflita, dizia que um dia iam me machucar, e meu avô respondia. Não vão andar golpeando esse animal, não vê que animal que é? Porque em Comapa as pessoas somos animais, daí que existem os animais brutos. Animal bruto, te disse que assim não era. Animal bruto que foi pelo caminho errado. O animal bruto arrebatou o fogo aos feijões.
Dessas tias, há uma tia que emigrou muito jovem e que não podemos partilhar com ela, não existem essas lembranças familiares que estão com as outras. Eu a busco, agora, na diáspora, agora que sou adulta, para tratar de fiar, para que a ponte continue existindo. Então minha tia me conta de sua infância em Comapa e de sua vida adulta em seu país de residência.
Tia, lhe digo, e você se lembra do sabor das “pacayas” e dos “izotes”? Lembra-se da chuvarada do poço? E as duas vamos reconstruindo a Comapa que ela deixou quando era menina e que eu conheci como adolescente, em visitas curtas. E nos une a ambas a migração, como emigraram minhas outras tias do povoado à capital. Só que minha tia e eu fomos mais longe, atravessamos as fronteiras de forma muito semelhante. E isso nos une e é um laço muito forte. E eu a estou conhecendo como adulta, como mulher, como migrante e como tia.
Graças à tecnologia, quando andam por perto minhas tias ou meus primos, nesta era de video chamadas consigo ver minha avó, suas expressões faciais, sua cor dos olhos, seus pômulos pronunciados que eu herdei e suas blusas de mangas compridas enroladas até o cotovelo que também são minha fascinação e que uso da mesma forma, porque para mim são parte desse fiar, do tecido das entranhas de Mamita, minha bisavó. E de Mamita são as receitas que me deu para fazer pão.
Vovó, mostrou as semitas, veja como ficaram. Ingrata, as arrebatastes com o fogo, tem que pôr no fogo manso, dessa forma que você assa no fogão é diferente ao forno de lenha, tem que estar vendo a cada tanto para que não queimem. E assim foi como fiz minhas primeiras semitas de Comapa, receita que me deu minha avó, que é da Mamita. Penso que talvez na terceira ou quarta vez estarão saindo como as de Comapa; por ora, essa primeira tentativa eu a desfrutei passo a passo e fazê-las foi uma viagem à minha Comapa natal, às entranhas de Mamita e à saudade das mãos grandes de minha avó.
Há buscas que se têm que fazer, com a urgência do impostergável; no caso das semitas, não é só o milho, a água de canela ou a forma de amassar, é uma continuidade. É amarrar e desatar nós. E é também uma conversação com meus ancestrais, embora nos confins do tempo nós não tenhamos nos conhecido; é reconhecer-me nelas através da cozinha. E me assegurar que as receitas de Mamita sobrevivam à minha morte, será a herança para que um dia, nos confins do tempo, quem quiser adentrar-se nas buscas do impostergável também as encontre e as beba como uma poção que acalma a alma e o espírito. Para dar continuidade a esse fiar ancestral.
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Ilka Oliva Corado @ilkaolivacorado