Os olhos do coração

Tradução do Beatriz Cannabrava, Revista Diálogos do Sul

Agarra a vassoura e o cabo da pá e começa a buscar lixo para recolher, mal começa a terceira jornada de trabalho e Milagros está caindo de sono, maquiou-se com pastas e pastas de pós, se banhou em loção e mal entrou no uniforme ajustado nas cadeiras, usa bota de salto médio, embora não seja necessário como parte do uniforme de trabalho, mas quer se ver um pouco mais alta. 

 No mês passado colocou pestanas postiças e pintou o cabelo de loiro aceso, embora ela saiba que jamais poderia ocultar completamente suas raízes mestiças por mais que tinja o cabelo e ajuste o uniforme. Gastou um dinheirão fazendo permanente, dinheiro que economizou durante cinco meses, ocultando o cabelo liso herança de suas ancestrais. 

Se pudesse também trocaria a cor da pele casca de árvore por uma mais clara, em realidade Milagros quisera parecer polaca ou russa, esse tom de pele lhe agradaria e essa altura e essa esbelteza. Nem louca quisera parecer índia, as índias que conhece são mais morenas do que ela, têm grande olheiras remarcadas. Pobres, – pensa – também as asiáticas com essa pela pálida, não queria ser asiática. Muito menos negra africana, com essa cor tão suja de pele, tão negra, tão escura. Milagros daria o braço direito para parecer europeia e ter olhos azuis ou verdes. Por isso, usa lentes de contato, embora na realidade não as necessite. 

Talvez assim – pensa – não a parariam tão seguido nos supermercados para perguntar-lhe se limpas casas ou se quer trabalhar fazendo hamburguesas em um restaurante de comida rápida. Por isso decidiu cambiar de aparência, porque sendo outra fisicamente não pareceria tão latino-americana. Não pode fazer nada com o inglês que apenas balbucia, por isso fala o menos possível no trabalho. 

Nas manhãs, de quatro a oito, trabalha em uma padaria colocando o pão em caixas que depois enviam a vários supermercados, na metade da manhã entra em seu segundo trabalho, de dez às quatro da tarde, em uma loja de vestidos onde fica no depósito enrolando fios, retalhos de pano e faz limpeza. O terceiro turno é de manutenção em um centro comercial, onde há maquininhas e restaurante. Enquanto os papais comem e bebem, as crianças jogam nas maquininhas. Aí entra às sete e sai às doze da noite. 

Milagros não quer ser da manutenção, mas o uniforme a delata e a pá e a vassoura com as que trabalha toda a noite. Quisera que um desses gringos que chegam para se divertir a vissem de outra forma, que quando se dirijam a ela não seja para pedir-lhe que recolha a comida que caiu do prato ou a cerveja que derramaram enquanto jogavam nas maquininhas. Quisera não ser a que limpa os banheiros. 

Por isso pinta o cabelo e faz permanente e coloca pastas e pastas de maquiagem, por isso pôs pestanas postiças que mal a deixam ver, por isso usa sapato de salto, embora se canse imediatamente, por isso compra essa loção cara que usam muitas gringas e europeias, para não parecer o que é: uma latino-americana mestiça como milhares que chegam aos Estados Unidos para trabalhar nos mil ofícios e que sua aparência física é só parte da formosa diversidade do mundo. 

Milagros não tem noção que o seu proceder, que a negação de sua origem, que seu desejo de ser outra, de ter diferente cor da pele, outra cor dos olhos é uma imposição que também viveram suas ancestrais milenarmente, porque querem que se envergonhem de sua origem e a recusem. Mas não tem ninguém em seu redor que diga isso, porque tudo o que a circunda é uma massa de mulheres latino-americanas que foram relegadas ao trabalho doméstico e de manutenção, sem uma só oportunidade para sair desse estado, por sua condição de indocumentadas. 

Milagros vê em outras seu próprio reflexo. Lástima que não teve a sorte – ainda – de encontrar-se na grande urbe com mulheres dos povos originários dos Estados Unidos, porque então elas seriam o refúgio para sua alma de migrante com essência de terra originária e não lhe permitiriam deixar-se vencer diante da imposição dos invasores. 

Diriam a ela que as asiáticas são belas com sua cor de pele, como o são as índias com suas olheiras características, como o é ela com sua altura e com sua etnia. E também lhe diriam que a negritude da África é a mais formosa de todas porque é a origem de onde nasceram todas as etnias do mundo. Que uma primeira aprendizagem seria deixar de violentar-se, renegando sua origem, desprendendo-se dos preconceitos e aprendendo a ver com os olhos do coração que são a excelsitude do espírito. 

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Ilka Oliva-Corado @ilkaolivacorado

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