Em qualquer lugar do mundo

Tradução do Beatriz Cannabrava, Revista Diálogos do Sul

O despertador toca uma e outra vez. Cheyo olha de longe, cansado, quer continuar dormindo, há apenas três horas chegou ao seu quarto, trabalhou todo o dia, quer dormir, só dormir, mas há anos que não dorme mais de quatro horas e não porque não queira, mas porque não pode, o ritmo do trabalho não o permite. 

As dores nas costas incomodam e a dor de dente lhe martela toda a cabeça, mal pode mastigar e cada vez que faz o esforço de carregar um peso nas costas sente como se tivesse uma agulha espetada nos dentes. Tem vários buracos negros porque estão podres lhe disse Jerónima, a moça que trabalha em um dos comedores fazendo tortilhas, como ele, ela também migrante da cidade da Guatemala, chegou de Quetzaltenango, aos 13 a para trabalhar como empregada doméstica e ele aos 11, para engraxar sapatos, mas há cinco anos trabalha carregando sacos está melhor aí, lhe pagam mais, mas suas costas se ressentem e uma dor no tornozelo direito o faz mancar de vez em quando. 

Cheyo é originário de Rabinal, Baja Verapaz, Guatemala, é o mais velho de nove irmãos, seu pai trabalha no campo, na plantação de amendoim e na colheita de bananas quando chega a temporada, também planta milho, feijão e ayotes no terreno que aluga anualmente e paga com a metade de sua colheita de milho. Sua mãe vende tamalitos de feijão e atoles no mercado de Rabinal, também lava roupa alheia e quando pode tecer mantas que termina vendendo aos turistas pela metade do preço, de tanto que pedem desconto, sempre diz que é melhor algo do que nada pois ela é a da necessidade. 

Na capital tinha um tio, irmão de sua mãe que trabalhava como segurança particular e alugava um quarto perto do mercado La Terminal, foi ele quem o levou para começasse a trabalhar para ajudar seus pais a criar seus irmãos, da mesma forma que fizeram eles com seus irmãos menores, é seu destino, assim temos que fazer os irmãos mais velhos, lhe disse. A viagem foi difícil, vomitou várias vezes, porque a fumaça da caminhonete era tão alheia ao cheiro de mato onde cresceu, nunca havia subido em um ônibus nem viajado tão longe. Sua mãe lhe deu envoltos em uma manta vários tamalitos de feijão e em um garrafão de óleo lhe pôs atol de três cozimentos, também lhe deu uma garrafinha de Água Florida que tinha usada, para o caso dele ter dor de cabeça ou ter frio de noite para que passasse nos pés e no peito. O abraçou chorando e lhe deu a benção, seu pai só lhe deu a mão e disse que já era hora de que se fizesse homenzinho e que sua ajuda econômica era muito necessária em casa. 

Quando chegou na capital encontrou no quarto a quatro homens, todos do interior do país, companheiros de trabalho do seu tio, que dormiam sobre esteiras. Sobre uma mesa de pinho encontrou um fogareiro de quatro bocas, elétrico, uma frigideira, uma panela, uma garrafa de óleo quase no fim e uma lata de café. No chão em um canto sobre um bloco de cimento, quatro pratos e quatro xícaras, o mesmo número de talheres e um pedaço de manta. Em um saco plástico pendurado de uma das vigas do teto vários rolos de papel higiênico e pedaços de jornal. Pendurada na parede uma folhinha com uma mulher de maiô.

O tio o apresentou aos demais que lhe deram uma cálida boas-vindas e se encolheu sobre uma das esteiras para que também se deitasse, no outro dia o levou para apresentar a um grupo de crianças que engraxavam sapatos na zona, a caixa e o material lhe foi vendido por um dos homens que consertam sapatos. Assim foi como Cheyo conheceu a capital, a fumaça das caminhonetes e o bulício que começava às duas da madrugada quando chegavam os primeiros caminhões de diferentes pontos do país para deixar e comprar mercadorias. 

Do genocídio jamais escutou seus pais falarem, foi seu tio que lhe contou que haviam desaparecido com a metade da sua aldeia e que haviam massacrado as pessoas de outras aldeias quando sua mãe e seu pai eram crianças, lhe advertiu que tivesse cuidado com a gente da capital porque não era igual a eles e eles estavam aí não porque quisessem, mas sim por necessidade. Lhe disse que não se igualasse a eles e que mantivesse seu idioma custasse o que custasse, porque era herança de seus avós.

Também lhe disse que tinha que se matricular na escola noturna para continuar estudando e Cheyo o fez entusiasmado, aí conheceu muitos amigos que também haviam chegado de outros lugares do país, falavam outros idiomas que ele não conhecia e entre todos e como podiam tentavam falar espanhol para não ficar atrasados nas aulas. Entre engraxates, carregadores de pacotes, tortilleras, cozinheiras, ajudantes de vendedores, ajudantes de sapateiro, guardas de segurança privada, pedreiros, padeiros e trabalhadoras sexuais da linha, Cheyo encontrou calor humano na grande urbe que era alheia totalmente a seus sentimentos e às suas necessidades. 

Os únicos que eram ruins aí eram os que iam comprar e que lhe gritavam como se estiveram espantando um inseto quando necessitavam que ele engraxasse seus sapatos, assim lhe contava à sua amiga Jerónima. Com Jerónima iam ao parque central quando podiam dar uma volta pela praça e tomar um sorvete, juntos descobriram que aí era o ponto de encontro de muitos como eles que também haviam chegado do interior do país, que também eram indígenas e que também como eles não se encontravam, que os tratavam muito mal os mestiços da capital em seus trabalhos e na rua.

Um amigo que carregava sacos o animou deixar de engraxar sapatos e a trabalhar como ele, só tinha que fazer uma carreta de tábuas de madeira, conseguir um laço duplo, uns dois sacos ou um pedaço de poncho para colocar nas costas, não requeria tanto investimento, era jovem e forte, e os mesmos clientes lhe iam buscar, uns com um assobio, outros com um grito, mas se acercariam a solicitar sua ajuda, lhe disse quanto cobrar por viagem dependendo da distância e do peso e assim foi como Cheyo deixar de engraxar sapatos para ser carregador. 

Trabalhou engraxando sapatos por 6 anos, aos 17 começou como carregador, tem 22 e a metade da sua vida na capital, em um envelope lhe envia dinheiro a cada duas semanas aos seus pais com os pilotos das caminhonetes que vão para o seu povoado , está fazendo o segundo grau na escola noturna, vê em Jerónima a beleza das matas de anis e camomila, cada vez que se aproxima dela sente que o coração lhe vai sair pela boca, Jerónima tem a alma das aves do mato onde passou sua infância: livre. E ele quer saber o que é a liberdade. 

Jerónima que está decidida a ir para o norte, porque tem dois filhos para criar. Foi abusada aos 12 anos por um dos irmãos da igreja que a deixou grávida de gêmeos, seus pais a enviaram para a capital a trabalhar para que os pudesse criar e eles os cuidariam, seguem frequentando a mesma igreja e perdoaram o irmão que lhe disse que não sabia o que aconteceu, que foi o demônio que o fez fazer isso, seus pais pensaram que parte da culpa foi dela para começar a desenvolver-se tão rápido e que seu corpo distraia os irmãos da igreja. 

Diferentemente de Cheyo, Jerónima com o único sonho é chegar aos Estados Unidos e poder juntar dinheiro para mandar trazer os filhos. Cheyo quer saber como seria viver de outra maneira, sem ser carregador, sem que lhe gritem, sem que o menosprezem, sem que se burlem quando fala espanhol, quer saber como seria ter dinheiro para comprar um pedaço de bolo ou um par de sapatos. Como seria enviar dólares para que seus pais construam uma casa e seus irmãos possam ir à universidade? Que tenham uma geladeira onde guardar a comida e uns móveis para que descansam as costas, lhe encantaria enviar-lhes dinheiro para que comprem camas e deixem de dormir em redes. Arreglar esses dentes para que deixem de doer. 

São as 3 da madrugada e toca a despertar, em uma das pensões perto da linha de trem o espera Jerónima, irão para o norte com um  grupo de amigos, sem pagar coyote porque não têm dinheiro e tampouco conhecem o caminho, mas não lhes afligem, porque quando eram crianças sobreviveram à ingratidão da capital de seu país, sabem que como adultos poderão sobreviver em qualquer lugar do mundo.

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Ilka Oliva-Corado @ilkaolivacorado

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