Sociedade demonstra o quão medíocre é quando além de não fazer nada, ainda esbanja soberba nas redes

Tradução do Beatriz Cannabrava, Revista Diálogos do Sul

Muitas vezes em um ato de inconsciência total, acreditamos, porque tivemos a maravilhosa oportunidade de aceder à leitura de livros, dúzias ao longo de nossa vida, podemos burlar-nos daqueles que foram empobrecidos no nível da miséria e cada vez que podemos lhes fazemos ver que jamais estarão no nosso nível intelectual e socioeconômico. 

É com eles que nos jactamos de nossos títulos universitários, porque estão tão por baixo na classificação da escala social que o sistema faz, que sabemos que passarão cem anos e seus descendentes terminarão limpando a casa dos nossos. Assim pensamos, demonstrando que a universidade passou por nós de madrugada. E porque com essa universidade somos a parte da sociedade que jamais vai fazer alguma coisa para que as coisas mudem e esses netos possam ir à mesma universidade que os nossos. Demonstrando o ruim que somos, ao não fazer nada para que a inclusão seja parte da mudança social. A essa parte da população nós gostamos de demonstrar que jamais comerão um pedaço de carne como os que nós comemos todas as semanas, e para isso publicamos constantemente fotos nas redes sociais das comidas que abundam em nossa mesa: os vinhos de reserva, a louça fina e apontando com a câmera do celular o resto do espaço para que vejam de uma vez nossas poltronas da sala, nossa mesa enorme da sala de jantar, de puro mogno que qualquer um não poderia comprar. Magno que foi roubado nos cortes ilegais das montanhas onde vivem essas comunidades em resistência.

Os quadros pendurados nas paredes e de passagem o cão de raça que embeleza a família. E como a cereja do bolo, a empregada doméstica em primeiro plano para que vejam que não somos como todos esses “mortos de fome” e que podemos dar-nos ao luxo de ter quem nos limpe o banheiro em casa. 

Expondo-a publicamente com o pretexto de gostar dela, porque se não gostássemos não a poríamos na foto, como “parte da família”. Seria parte da família se lhe pagássemos um salário justo? Será parte da família quando seus filhos frequentem a mesma universidade que os nossos? E se os papéis se trocaram e fôssemos nós limpando banheiros de outros, o que pensaríamos da vida e de nossos empregadores? E se nossos empregadores fossem como nós e se comportassem da mesma forma? 

Muitas vezes acreditamos que porque sabemos de ortografia podemos burlar-nos daqueles que não aprenderam a ler e escrever e os catalogamos como incultos. E que quando com tanto esforço se matriculam na escola noturna, que frequentam depois do trabalho de todo dia em ofícios, suportando humilhações e abusos de empregadores como nós, nos tornamos a burlar de sua letra, de suas faltas de ortografia, da sua forma de falar.  

Cremos que o único conhecimento válido é o nosso, quando desconhecemos praticamente tudo, porque não sabemos de mecânica, de construção, de jardinagem, do trabalho do campo, de como fazer uma blusa numa oficina de montagem, de como fazer um sapato, de como fazer uma panela de barro, como fazer adobe, como se faz uma mesa, como se poda uma árvore para que não seque. Como pescar com rede, como limpar o esgoto, enfim… Quantos dias tem que chocar uma galinha seus ovos para ter pintinhos, como capar um porquinho, em que tempo trocam de penas os patos, enfim, desconhecemos tanto! Cremos que o único que vale é nosso diploma universitário e isso nos faz superiores aos demais. A universidade é um tipo de conhecimento, mas não é o único nem o mais importante, é um a mais, nada mais. 

Cremos que porque falamos dois ou três idiomas estrangeiros podemos humilhar os que falam os idiomas dos povos originários. Com que direito? E quando estas pessoas que foram excluídas por gerações, empobrecidas e violentadas dia após dia, tentam algo que nós acreditamos que só pertence ao nosso nível social, nos burlamos delas, as humilhamos, as fazemos ver que sua tentativa não vale porque é impossível o que buscam, que isso é privilégio nosso, nada mais. 

Assim é como mediocremente nos burlamos de artesãos, pintores, cantores, poetas, escritores, que tentam desde o mato, nos barrancos, onde não há luz nem água potável, onde a internet não existe nem nas escolas. E lhes dizemos que seus quadros das flores e ervas do campo não servem, porque não têm técnica, porque não são como os dos pintores famosos que desde o berço e da sua classe social tiveram todas as ferramentas ao seu alcance. Porque não valorizamos o simples, a inocência, que são mais fortes que a maldade e a manipulação. 

E quando cantam, nos burlamos de sua letra que recita a água da quebrada de seu povo e a telha da casinha de adobe onde cresceu. Porque para nós a melhor letra é essa que nós sabemos em idioma estrangeiro, de músicos que tiveram a liberdade e as ferramentas para criar. O que há de errado em escrever uma canção à raminha de tomate que cresce no meio do mato. O que há de medíocre em pintar a galinha no galinheiro da casa? 

E quando alguém escreve da brisa do amanhecer em seu povoado, lhe dizemos que é medíocre, que não tem substância, que não tem madeira, porque estamos acostumamos a que o escritor que lemos nos conte de uma xícara de café no 30º andar de um arranha-céu e dos passeios nas ruas do centro de Nova York. Claro está, com as palavras rebuscadas. 

E quando alguém desse povoados onde não há luz nem água potável quer publicar um livro, a partir dessa periferia onde o governo desaparece com jovens todos os dias, lhe fechamos as portas na cara, porque não pertence a nosso nível social, e por consequência o que tenha que dizer não nos importa. E desqualificamos de entrada suas letras, porque não tem o respaldo de um diploma da universidade e o conhecimento que dá viajar pelo mundo. Viajar pelo mundo é um tipo de conhecimento, não é o único. 

E assim é como nós, grandes formados em universidades, que tivemos a oportunidade da educação superior, da educação formal, que sempre tivemos água quente no banho, que nunca nos faltou abrigo e nos sobrou a comida e o dinheiro na carteira, somos parte do sistema que humilha e exclui. Já, e tantas vezes fazendo-nos passar por humanistas para nossa conveniência pessoal e familiar. 

Por isso nos dói tanto quando alguém que sai da pobreza, da exclusão, não esquece sua origem e em lugar de converter-se em machado ao encontrar gente como nós, abre as portas das grandes alamedas para que passem os excluídos. E nos dói muito mais, quando foi um dos nossos, com todos os privilégios desde o berço, o que desperta em consciência social e abre a porta das grandes alamedas para que passem os excluídos. 

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Ilka Oliva-Corado @ilkaolivacorado

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