Tradução do Beatriz Cannabrava, Revista Diálogos do Sul
Os últimos três anos do curso primário, a hora de recreio eu passei com orelhas de burro, olhando para a parede na diretoria do colégio. Foi meu castigo em absolutamente todos os recreios, não houve um só que eu pudesse desfrutar.
Sempre desejei mais, ansiei mais do que minhas circunstâncias de vida permitiram, sempre sonhei com a liberdade e a equidade desde pequena. Então fui uma menina tremenda, que saiu da norma, cheia de energia, que acreditava ser uma cabrita a mais da manada que pastoreava que nunca chegou ao rebanho.
Nos recreios pedia para jogar quando os meninos, meus companheiros de classe, se punham a jogar futebol; não me deixavam jogar porque era menina, coisa que me enfurecia, então os desafios às trombadas e sempre terminava ganhando.
Quando o professor chegava já estava desmanchada a bainha do meu uniforme, rodado de avesso e direito na terra do pátio e me haviam despenteado toda das puxadas de cabelo que me davam os moleques, porque sempre tive o cabelo comprido. É outra das minhas rebeldias.
O professor me levantava puxando pela orelha e me levava assim à sala onde estava a diretora e lhe dizia que me havia encontrado brigando com os meninos; meu castigo: colocar as orelhas de burro que eram feitas de papelão e me diziam que ficasse de cara para a parede. Nunca levaram para o diretor nenhum dos meus companheiros, a castigada sempre fui eu.
Talvez se os meninos me tivessem dobrado nas brigas, a história teria sido outra? O certo é que nunca fui uma menina débil por fora, tudo ao contrário por dentro. Nunca escutei o professor ou a diretora dizerem que também tínhamos direito a jogar futebol, pelo contrário, quando sabiam minhas razões me diziam que as meninas brincavam com bonecas, loucinhas, coisa de menina, não de menino.
E eu sempre, toda a minha vida fiz coisas de menino porque nunca acreditei que exista algo que as mulheres não possamos fazer; o preço que paguei foi alto, mas continuo insistindo porque sou por natureza uma cabra louca e afinal de contas, as mulas sempre preferimos o campo.
Para os dias de fim de ano, em uma dessas tantas vezes que o professor me levantou pela orelha, em lugar de levar-me à diretoria para meu castigo com as orelhas de burro me levou ao salão, agarrou o gravador e colocou um cassete, me disse que escutasse a canção com atenção e quando me sentisse só e derrotada, quando sentisse fúria e dor escutasse essa canção; era o grupo Abba cantando Chiquitita.
Depois colocou outro cassete, do grupo Tormenta, a canção: Adiós chicos de mi barrio. Eu que nunca pude falar nem expressar meus sentimentos nem minhas emoções não lhe disse nada, fiquei em silêncio chorando a fúria de ser castigada por tentar jogar futebol com os meninos. Essa foi uma das primeiras derrotas que vivi. À infância não se cortam as asas, nem se subjugam por nenhuma razão.
Ao longo dos anos, quando escutava Chiquititas, chorava mares, nunca a procurei, mas aparecia em momentos inesperados, então chorava o fel da minha frustração. Sempre fui tratada como uma causa perdida, a última, a olvidada, pela qual não há que apostar nada porque se perde. Cheguei à adolescência e continuei debatendo-me em duelos de pancadas com os moleques, pela mesma razão: a equidade e meu direito de jogar futebol.
Era a única menina que jogava futebol no bairro nessa época. Para poder fazê-lo tinha que brigar com todo o time, isso a cada vez durante longos anos, até que um dia compreenderam que não podiam seguir negando-me o direito. Essa pequena vitória a celebrei com cerveja, é claro, como se deve, na periferia.
Nunca imaginei que chegaria aos 18 anos, sempre acreditei que morreria antes; os 18 anos estavam tão longe porque cada dia era um tormento de desejar morrer e não amanhecer. Nunca quis viver além dos 18 anos, minha vida era muito dura para desejar postergá-la mais.
Hoje, 11 de novembro de 2021 estou cumprindo 18 anos de ter chegado a esta minha cidade alugada, onde me converti em estrangeira. Como nada, se passaram 42 anos na minha vida. Este ano foi a primeira vez que celebrei meu aniversário, o fato de estar viva e foi o primeiro ano em que não pensei em me suicidar.
Ontem à noite, enquanto pintava, liguei o rádio em meu celular e de repente o inesperado, que foi como um sopro de vida, a canção do Abba, Chiquitita, e a chorei e a dancei com meus pincéis na mão, mas pela primeira vez não chorava de dor, nem de frustração, nem de fúria; chorei de alegria, de esperança, de agradecimento.
Porque sendo estrangeira, neste meu caminhar migrante, neste pedaço de terra que aprendi a querer, em um de meus tantos labirintos e peregrinações emocionais, deduzo que algum dos meus desvarios a chamou com tanto afinco que ela escutou e teve a humildade desde aquela altura de baixar a essa lonjura de ladeira onde me encontro.
É a Nuvem Passageira que me abrigou, que me escutou, com a que posso falar, a que me fez sentir querida e valorizada, a que não me julga nem me faz sentir envergonhada de quem sou e como sou, a que me fez criar e escrever além de minha torpeza e aridez. A que me fez pintar e assim realizar meu sonho de menina.
E a que neste momento está aqui comigo, nesta garoa que vejo cair através da janela do meu ninho-estúdio. Porque há dias que a converto em chuva, em névoa, em sol, em folha de bordo, em ramo de pinheiro, em taça de vinho, em cores das minhas pinturas, em letra de minha poesia. No ar que respiro.
O caminho não tem sido fácil, mas hoje desde minha fortaleza, não desde meu ser roto, porque pouco a pouco foi se curando, posso dizer àquela menina que sempre se sentiu uma causa perdida, à que punham orelha de burro na diretoria do colégio e que castigavam na hora do recreio, olhando para a parede, à qual todas as portas foram fechadas na cara, que valeu a pena resistir porque hoje está aqui finalmente a aurora.
E que me sinto sumamente orgulhosa de sua tolice, de sua aridez, de sua rudeza, da sua essência caipira, de seu cabelo despenteado, de sua cor da pele, de seu cheiro de negra, de seu nariz de negra, de suas bobagens, de seus desvarios, de suas decisões algumas vezes não tão acertadas, de seus retrocessos, de sua forma de querer, porque tudo, absolutamente tudo a levou a ser o que é hoje em dia. E a celebro e a abrigo e a quero e a admiro, cada dia um pouquinho mais.
E lhe digo que, sem lugar a dúvida, continuarão existindo dias difíceis, que são na verdade a maioria, mas que com sua fortaleza saberá superá-los como tem feito sempre e com seu sorriso os saberá agradecer porque trazem consigo o aprendizado.
Para: Carolina Vásquez Araya, em dia de garoa
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Ilka Oliva Corado @ilkaolivacorado