É preciso muita coragem para deixar a pátria que nos obriga a emigrar

Tradução do Beatriz Cannabrava, Revista Diálogos do Sul

Depois da cerca a pátria se converte em saudade perene. Sabem-no os indocumentados mais do que ninguém. Converte-se nessa carta velha de papel rasgado por tanto dobrar e desdobrar. Está na lembrança dos dias de chuva, da plantação crescendo, das flores frescas ou do aroma do café torrado em panela de barro.

A névoa da terra que se deixou ao outro lado da cerca atravessa as fronteiras e se infiltra pelas frestas das janelas dos arranha-céus onde trabalham limpando os banheiros e os pisos as gerações que tiveram que emigrar porque na própria terra não encontraram nada mais que violência e fome; foram largadas ao esquecimento e obrigada a emigrar em massa. 

As flores tenras das goiabas vermelhas aparecem titilando entre a queimação do meio-dia nos sulcos da plantação onde trabalham em bandos milhares de indocumentados; sonham com a água fresca do rio e com a sombra das tamarindeiras; a pátria então é um delírio. Sentem-na os ombros dos pedreiros que carregam os sacos nas grandes construções, porque o indocumentado é sempre o último, o que carrega mais, o que trabalha mais horas, o que recebe menos pagamento, o que sempre diz sim, o que nunca pode dizer não; aí dói a pátria na ferida da alma. 

Dói nas mãos das mulheres que limpam casas, na artrite dos ossos, nos braços das babás que cobiçam crianças alheias, enquanto as próprias ficaram na terra longínqua ao cuidado dos avós ou das tias; a pátria então é um vazio insondável. Dói nas despedidas que não puderam ser dadas, nas notícias que chegam dos decessos dos seres queridos, nos abraços postergados, nas promessas, nos planos para o futuro, na necessidade do reencontro, nos adeuses definitivos quando se acende uma vela e se reza à distância pelo descanso da alma de quem morreu; aí no bulício de um quarto lotado de indocumentados. 

Dói na reclamação das crianças que exigem desde o outro lado da cerca, o abrigo e a companhia. Dói nos pés cheios de bolhas e na pele arrebentada dos que caminharam durante dias fugindo da fome e da exclusão, buscando em outras terras um respiro.

Dói no púbis terno das meninas manchadas que foram carne de canhão no caminho espinhoso por onde transitam os migrantes indocumentados nas corridas espavoridas em outros solos, onde são vistos como despojos; então a pátria é uma ferida em carne viva e um trauma por toda a vida.   

A pátria que exclui, que violenta, que mata de fome, que desaparece, que cospe, que humilha, que obriga a emigrar. Que separa famílias. É a pátria que dói, o pedacinho de sua terra que vai ancorada no peito, que emerge entre os poros, que palpita sem cansaço no coração ferido, que se curte na pele, que envelhece no cansaço dos anos e à qual desejam voltar um dia, é a pátria mal agradecida que recebe milhões de dólares em remessas dos filhos que obrigou a migrar e que jamais a esquecem: é a pátria do indocumentado e para amá-la assim há que ter coragem de saltar para o outro lado da cerca. Não é para qualquer um!

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Ilka Oliva Corado @ilkaolivacorado

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