Indocumentados e sem direitos: dano psicológico que vivem é invisível para o sistema

Tradução do Beatriz Cannabrava, Revista Diálogos do Sul

Há um mês que não o vejo em seu posto de trabalho; é o encarregado de colocar nas bancas as cenouras, fungos, quiabos, nessa longa banca do supermercado onde sempre há dois trabalhadores colocando as verduras. Estará doente? Pegou o vírus? Me pergunto enquanto observo detidamente as outras bancas para ver se o encontro, mas não, não está, só há jovens fazendo o trabalho. Uma nova leva, a troca de turno, os que tem toda a disposição para trabalhar, os recém emigrados; suas carinhas dizem tudo.

Os recém emigrados indocumentados parecem levar um cartaz em que anunciam que acabam de chegar e que não têm documentos, o medo próprio das circunstâncias eles demonstram em dobro. Esses olhares, essas formas de andar, a roupa, seus sotaques tão de seus lugares de origem, que é como se os remarcassem. 

Tudo isso vai se diluindo com os anos como uma pintura a têmpera que recebe sol todos os dias e empalidece até que suas tonalidades se tornam macilentas; isso faz o tempo com os migrantes indocumentados que enlouquecem no vai-e-vem da vontade de sair correndo para a liberdade e o enorme muro de reclusão com que topam, que os vai devorando física e emocionalmente.

Para os indocumentados não existe a aposentadoria, embora tenham pagado impostos durante seus anos de trabalho, não têm direitos trabalhistas que lhes beneficiem.

Desculpe, pergunto a um dos jovens que está em uma das bancas de frutas: o senhor que sempre trabalha naquela banca não veio hoje? Não vem mais, trocou de trabalho. Trocou de trabalho ou pegou o vírus?

Pergunto como se o jovem fosse me responder à verdade ou se soubesse. Me diz que se aposentou, como se para os indocumentados a aposentadoria existisse. Era o mais velho dos que ficavam, talvez o único, todos foram indo embora nos últimos meses, como se a pandemia os houvesse atirado para outro lugar ou desaparecido.

Para um indocumentado não existem melhores opções de trabalho, é o faz tudo, que no fim termina recebendo o mesmo pagamento, centavos menos, centavos mais, e terminando o dia com o mesmo medo de encontrar-se com a “migra” no caminho de volta à casa ou na manhã seguinte no caminho ao trabalho. 

No mundo dos indocumentados é difícil ter amigos, conversar com desconhecidos, criar laços emocionais com outros, pela própria situação e o medo de ser descobertos sem documentos e ser deportados; é difícil confiar nos outros, então as pessoas se isolam, vão de casa para o trabalho e vice-versa e assim podem viver durante décadas, ter suas famílias e esses filhos que não vão conhecer tios nem avós a não ser em fotografias, ou através de histórias contadas por seus pais, não vão à casa de amiguinhos ou levar uma vida normal como os que os têm.

É claro que há exceções, mas são muito poucas comparadas com a realidade de milhares nesse encerro físico e emocional de não ter um papel carimbado que os façam visíveis como seres humanos. E isso arrasta famílias inteiras.

O dano psicológico que vive a outra geração, a dos filhos e muitas vezes as dos netos, é invisível também para o sistema, são mão de obra barata como seus pais indocumentados, embora tenham nascido no país. E que país hoje em dia tem leis humanas para migrantes indocumentados? Penso que nenhum.

Então como não há familiares, como não há amizades próximas, essas pessoas que vão se encontrando no caminho da vida diária se tornam os laços com que interagem e muitos indocumentados conseguem sair do seu encerro emocional.O bom dia na padaria, com os trabalhadores do supermercado, na loja da esquina, na licoreira, as pessoas que viajam no trem, no ônibus, essa simples saudação é um mundo, abre um mundo de luz momentaneamente, é um respiro.

Uma lufada de ar puro que talvez alguns com documentos jamais poderão entender por que só quem não tem documentos sabe o que é viver como indocumentado e o encerro emocional e físico que isso traz. E são perdas; cada vez que um desses personagens desaparece da vida diária, a rua se torna mais vazia, o supermercado tem menos cor, a viagem de ônibus pode ser mais tediosa e o silêncio, e a solidão com os que muito poucos podem conviver se tornam enormes labirintos sem saída. 

Saio do supermercado pensando no senhor de camisa quadriculada que sempre me cumprimentava quando passava em frente à sua banca; terá regressado ao seu México natal? Terá mudado de trabalho ou foi o vírus?

De qualquer maneira a banca não será a mesma, o supermercado não é o mesmo sem os que foram indo, embora cumprimentemos os novos, aos que chegaram com toda a vontade de trabalhar e sonham regressar em dois anos, comprar um terreninho, fazer sua casinha e montar um negócio em seu país de origem.

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Ilka Oliva Corado @ilkaolivacorado

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