“El Colocho”, o jornaleiro que pôs à minha disposição o horizonte aberto para eu cultivar

Tradução do Beatriz Cannabrava, Revista Diálogos do Sul

Pela manhã me acostumei com duas coisas, ler e ver plantas. Não há orvalho da alvorada sem leitura e sem plantas. A leitura me ficou como um hábito dos meus dias de infância vendendo sorvetes no mercado em meu Grande Amor, Cidade Peronia. As plantas, mais que um hábito são uma necessidade, é como uma espécie de oxigênio, como também é à terra. Necessito tocar à terra.

Meu pai dizia de manhã: levantem-se, caminhem, estirem os músculos, respirem o ar fresco do dia, não há nada melhor que isso, como ver as plantas. Enquanto nos acariciava para nos despertar. Nós, às quatro crianças nos enroscávamos debaixo do poncho e o lençol florido na cama de metal com o pé coxo. 

Às duas mais velhas nos levantávamos com a costas molhadas de urina da noite dos comuns. Tínhamos que tirar o colchão para secar o dia inteiro. Até o sol de hoje, o amanhecer é a melhor parte do dia para mim. 

Eu, em realidade, li poucos livros; no arrabalde não havia acesso a eles, custava um mundo economizar para os livros de texto que comprávamos usados; então nem falar de um conseguir um para uma leitura fora disso. Esses luxos eram demasiados demasiado caros para nossas circunstâncias de vida.

No mercado eu me acostumei a ler os jornais, não porque os comprasse, mas quando ia oferecer sorvetes aos vendedores de outros postos, eles me emprestavam seus jornais; que idade teria? Uns 9 ou 10 anos, por aí. Esses vendedores eram o acidente, indígenas que haviam migrado ao arrabalde e viviam no setor do Assentamento que havia sido invadido por muitas famílias recém chegados do ocidente e de outros arrabaldes da capital.

O Assentamento era um setor de terra e mato que as pessoas ocuparam e construíram aí suas choças, até que com o passar dos anos conseguiram ser donos com documentos na mão. A verdadeira colônia ficava acima da parada de ônibus. 

Creio que compravam os jornais mais para apoiar “El Colocho”, o jornaleiro, que para os ler, porque não davam conta das pessoas que rodeavam seus postos para comprar. Que dias aqueles, de tantas vendas para eles. Falavam de lugares como Totonicapán, Sololá, San Marcos, Quetzaltenango.

Foi nos inícios da década de 90, quando o pinheirinho da rua Danúbio ainda tinha seus ramos roliços que davam sombra a dúzias de crianças que se acercavam para brincar na ladeira que estava em frente ao boulevard principal, em frente da casa de dona Elsa, a senhora que vendia bananas no mercado La Terminal, e os meus pais diziam que era oriunda de um lugar da costa chamado La Empalizada, onde havia uma praia.

Bem, na verdade não sei se ela havia nascido ali ou eu com o passar dos anos inventei, mas que havia uma história entre ela e La Empalizada, havia. Ou eram outros os da história? A estas alturas e com a chaveta meio oxidada não me lembro bem.

O caso é que dona Elsa vendia bananas no terminal e quando eu ia segunda — ou terça feira comprar a fruta para fazer os sorvetes, se me sobrasse dinheiro passava comprado uma medida de mandioca fresca e aí eu a via com seu filho Rocael. Helen, sua filha mais nova, conhecida no baixo mundo dos apelidos dos básicos como Helendríbiris, estudou comigo na mesma sala; passados os anos Helen pôs sua própria venda de bananas em frente ao pinheirinho que na década de 90, quando os ventos de novembro apareciam, sacudiam as folhas da árvores que atapetavam o morrinho. Hoje se balançam os ramos velhos que crepitam à menor brisa. 

“El Colocho” era pau pra toda obra como quase todos na colônia. Madrugava no centro para trazer os jornais, passava deixando uns, no mercado e daí ia a entregar outros em sua bicicleta, ou com o passar dos anos, em sua moto. Na metade da manhã já estava desocupado e fazia qualquer trabalho que aparecesse.

“El Colocho” me deixava fiado um jornal todos os domingos porque a mim, fascinava ler a revista cultural desse dia. Eu me lembro dele caminhando pelo corredor central, com seus jornais debaixo do braço, despenteado, e aí passava a me deixar fiado o jornal que eu lhe pagava no meio da semana ou no seguinte domingo quando me deixava o outro.

Nesse tempo eu ganhava cinco centavos por sorvete, porque minha mãe nos disse desde o princípio que vender sorvetes era o nosso negócio, uma espécie de empresa e que devíamos aprender um ofício e também ir à escola porque senão quando crescemos se um não dava certo, tínhamos o outro. Para ela era muito importante que desde criança soubéssemos manejar nosso orçamento, que contássemos com dinheiro próprio, mesmo que fosse para comprar uma laranja descascada com sal. Então, desses cinco centavos que ganhava por sorvete, eu juntava para pagar a “El Colocho” os jornais fiados.

Graças aos jornais que me emprestavam os vendedores do mercado, Martín o da miscelânea e Domingo, o vendedor de grãos, eu pude ler de segunda a sábado, sem falta. E graças a “El Colocho” tive meu próprio exemplar todos os domingos e isso me permitiu viajar desde criança, conhecer lugares impressionantes que eram aumentados e pintados de diferentes cores com minha imaginação.

Era como voar, como piscar e magicamente aparecer em outro lugar de repente, como desaparecer daquele posto de sorvetes momentaneamente ou durante longas viagens que duravam o que demorava em chegar outro comprador a perguntar dos sorvetes.

Eram pequenas leituras que se tornam viagens épicas, atemporais. E eu sempre começa a ler os jornais de trás para diante e assim me acontece com os livros até hoje, primeiro os folheio de trás para adiante antes de começar a lê-los. 

Eu me acostumei a ler, embora naqueles anos não sei se foi como uma brincadeira, se foi como escape, ou por que foi, porque doem as pernas de ficar em pé a manhã inteira diante de uma fileira de sorvetes e de inventar sorrisos, cair bem, agradar o possível comprador, utilizar a linguagem mais cordial para convidar o cliente. Praticamente fazer piruetas para conseguir vender.

Atuar, vender em um mercado ou ser vendedor ambulante é uma espécie de arte de rua. Pôr uma máscara e fingir alegria, bem-estar porque ninguém quer comprar de quem está triste, de quem está chorando, de quem está deprimido, pelo contrário; passam de longe e vão a outro lugar com quem está alegre. Com quem chama a alegria, o frescor, as cores, com quem tem um pedaço de fruta para oferecer para que provem o sabor.

Quem se atreve a partir um abacate qualquer só para mostrar que está bom, arriscando-se a que o comprador vá embora porque não buscava abacates ou não teve vontade de comprá-lo. Quem paga a esse vendedor o abacate? Será a cena. Somos atores de primeira mão os vendedores de mercado e ambulantes. Vamos ao trote. 

Necessito ler e ver plantas todas as manhãs, é minha forma de começar o dia, minha saudação à vida. E claro, a “El Colocho”, o jornaleiro que pôs à minha disposição o horizonte aberto para que aquela menina sorveteira o sulcasse com suas asas da imaginação. 

Claro, isto depois de fazer minha rotinas de alongamento muscular, porque antes da leitura e na alvorada esteve meu primeiro amor: o futebol.

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Ilka Oliva Corado @ilkaolivacorado

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