Por imersão em privilégios, humanidade é incapaz de ajudar quem precisa

Tradução do Beatriz Cannabrava, Revista Diálogos do Sul

Acreditamos que outra pessoa por estar em piores circunstâncias econômicas que nós, merece isso que praticamente é lixo

Muitas vezes nos sentimos derrotados, frustrados e dizemos uma e outra vez, molestos, furiosos, questionando: temos direito a uma vida melhor. Uma vida com direitos trabalhistas, com folga econômica. Direito a uma casa melhor, espaçosa, com grande quintal e outros móveis. A ter a geladeira cheia de comida. A poder comprar o que quisermos, a ter esse dinheiro extra para viajar e comprar um carro ou trocar o que já temos. Direito a um melhor trabalho… sim temos direito e esse mesmo direito têm outras pessoas nas quais não pensamos por estar ensimesmados no que pensamos que nos falta, sem nos dar conta de que outros estão passando muito mal.

A que terá direito o cortador de cana ao qual se vai à vida entre o sol, o lombo curtido e os sonhos rasgados? O boia-fria que vai de fazenda em fazendo colhendo frutas e verduras em troca de um pagamento que não dá nem para o básico? Esse boia-fria humilhado constantemente pelo capataz que pensa ser dono da fazendo. Não têm direito a uma cama esses boias frias que dormem amontoados no solo como lenha cortada?

A que terão direito as mulheres que enchem as pernas de veias inflamadas em pé durante 16 e 18 horas trabalhando em fábricas e montadoras? A ir ao banheiro pelo menos? Operárias que saem de suas casas de madrugada e retornam à meia-noite, que não viram um raio de sol durante o dia, as que têm que trabalhar todos os dias do ano. As que não recebem as horas extras.

E as que são contratadas para fazer tortilhas? Nesses restaurantes de luxo, onde fazem as tortilhas ao lado das mesas, quanto ganham essas mulheres? Têm direitos trabalhistas? Não é só fazer tortilha, são as que cozinham e limpam quando o restaurante fecha. As que são bonitas para a foto folclórica que os comensais publicam nas redes sociais.

A que terá direito o cortador de cana ao qual se vai à vida entre o sol, o lombo curtido e os sonhos rasgados

Os meninos que engraxam sapatos, que trabalham em lojas e armazéns, que carregam sacolas nos mercados. Que direitos têm? A que nós os utilizemos como burros de carga? A que altaneiros ponhamos os sapatos para que os façam brilhar, aos que exigimos ligeireza para atender-nos? A que têm direito os meninos que vemos todos os dias fazendo malabarismos nos semáforos? As famílias que vivem nos lixões? Terão direito a uma casa como a nossa, com móveis parecidos com os nossos, a nosso carro, a nosso quintal, a nossa geladeira? Ou que nós pertencemos a outro nível e a eles não é permitido um teto para dormir e ter uma cama, um abajur, uma mesa de noite?

Esses meninos não têm direito a uma bicicleta como têm os nossos? Não têm direito a ir à escola, a deixar de ser explorados trabalhando? Esse carregador de sacolas não tem direito a um trabalho que não lhe rompa a coluna vertebral? Não tem direito a ter uma casa com uma cadeira para sentar-se e descansar? Vamos, não têm direito ao lazer?

Essas meninas, adolescentes e mulheres sequestradas para exploração sexual acaso não têm direito a outra vida? E os idosos vendendo nas ruas, expondo-se a humilhações, a que lhes chamem de estorvo, a que sejam alvos de gozação e que lhes exijam descontos que jamais pediriam em um supermercado? Eles têm direito a que? 

Muitas vezes por estarmos imersos em nossa própria dor, em nossa própria cólera e frustração que, é claro, temos direito a ter e a sonhar com vidas diferentes, não vemos que há pessoas que estão vivendo uma vida de inferno, às quais poderíamos ajudar, porque sempre se pode ajudar, ninguém está realmente tão mal para que não possa ajudar outra pessoa em piores circunstâncias. Que tanto é nossa ira para exigir a um governo que transforme as condições de vida não nossas, porque teto para dormir nós temos, mas sim as deles, dos milhares que moram nos lixões? Que mudem as condições de trabalho dos cortadores de cana, dos boias-frias, das operárias? Que tanto estaríamos dispostos como sociedade a não utilizar o trabalho de carregadores de sacolas e a não explorar meninas e adolescentes em trabalhos de limpeza de casas? Que tanto faríamos para que essas meninas tenham a oportunidade de estudar? De que esses meninos que engraxam sapatos e fazem malabarismos nos semáforos estudem? E por essas meninas e adolescentes que deixam os braços nos fogões fazendo tortilhas para que outros encham os bolsos? Dos adultos idosos humilhados para se pôr na frente de uma casa para vender sua cesta de verduras? 

Sempre pensamos em direitos e benefícios para nós e os nossos, mas somos incapazes de pensar que outros em piores circunstâncias também os merecem.

Sempre penso nisto e é uma forma de medir nosso egoísmo humano ou nossa generosidade. Se tivéssemos dinheiro para comprar um par de sapatos novos, doaríamos os velhos para alguém que necessite e compraríamos os novos para nós, ou ficaríamos com os que temos e compraríamos os novos para alguém que necessite? É fácil desprender-se do que já não precisamos e está em mal estado, acreditamos que outra pessoa por estar em piores circunstâncias econômicas que nós, merece isso que praticamente é lixo, e para lavar-nos da culpa, o doamos. Mas somos incapazes de comprar algo novo e dá-lo a um completo desconhecido, mesmo sabendo que o necessita mais que nós. Não, não somos tão boa gente como aparentamos. E não, não estamos em tão más condições econômicas para não virar e ver ao nosso redor e saber que podemos ajudar alguém que realmente necessite. Se não é com dinheiro é com tempo, com o que sabemos fazer, mas que se pode ajudar, se pode.


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Ilka Oliva Corado. @ikaolivacorado

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