A pintura como deleite e a escrita como catarse: a salvação humana que vem das artes

Tradução do Beatriz Cannabrava, Revista Diálogos do Sul

Quando escrevo é como se abrisse uma torneira de pressão e saísse água aos borbotões, mas com a pintura é outra coisa, pintar me provoca satisfação

Minha cama não tem cabeceira, reparei nisso há dois dias quando quis ler à noite e senti dor no lombo prensado na parede; se eu puser uma, não cabe a cadeira na qual me sento para escrever diante da minha escrivaninha, e prefiro escrever. Meu estúdio-quarto está cheio de quadros que tapam as paredes junto a uma guitarra pendurada ao lado de dois captura-sonhos. Esse estúdio-quarto está cheio de frascos com pincéis e teias de aranha nos cantos; minha escrivaninha ocupa um bom espaço, e não, não deixo espaço para os livros, assim que minha biblioteca é escassa, apenas uns quantos que estão sobre um arquivo de metal do qual tiro o pó de quando em quando. 

Sempre sonhei com uma escrivaninha grande, longa, embora quando criança fazia minha lição de casa ao trote, nas mãos, enquanto limpava o chiqueiro das carroças, ordenhava as cabras, regava o quintal e varria com escovão, ou recolhia ovos do galinheiro; assim foi que aprendi a sintetizar para a hora dos exames, duas lidas em uma folha onde resumia o conteúdo do semestre e o questionário habitual como recordatório do que eu acreditava que fosse importante. A escrivaninha naqueles anos era um anseio impossível, e o foi também como migrante em meu povoado alugado até que decidi torná-lo realidade. 

Ser escritora? Não, isso nunca passou por minha mente. O que sempre esteve em mim, foi pintar, de fato a pintura é meu primeiro amor nas artes, na vida continua sendo o futebol. Mas o que eu ganhava dava apenas para o básico e isso esticando os trocados e tirando aqui para ajustar ali. Foi tanto o meu amor pela pintura que entrando na adolescência, para que não me doesse mais, eu a bloqueei dos meus pensamentos e a fiz desaparecer durante décadas, talvez inconscientemente; até que em 2013 a milhares de quilômetros daquele quintal que costumava varrer com escovão, timidamente comecei a pintar em aquarela uma paisagem da rua que leva à casa da minha avó materna, a casa onde nasci em Comapa, na Cidade da Guatemala. Me tremiam as mãos, reguei as tintas de aquarela sobre a folha até que na terceira tentativa saiu, e pouco a pouco pude acalmar meus nervos e pintar aquela rua em aquarela e acrílico.

Foi uma sensação tão diferente que a que provoca em mim, escrever; quando escrevo é como se abrisse uma torneira de pressão e saísse água aos borbotões, é um processo absolutamente de catarse; mas com a pintura é outra coisa, pintar me provoca satisfação, gera em mim a sensação de bem-estar, de tranquilidade, de paz e de plenitude; provoca em mim alegria e felicidade. Nada importa, nada existe quando pinto, são só meus pincéis dançando com as cores.

E embora me fascinem as aquarelas, o meu negócio são os abstratos. Conheço pouco ou nada de pintura, de técnicas, da teoria da origem da arte e essas coisas. Nunca tive aulas de pintura como nunca tive de escrita. E não sou uma desenhista, mas isso não me importa. Pinto o que sinto que meu coração expressa, e tal como na escrita, que não posso escrever por encomenda ou cerebralmente, tampouco posso pintar por encomenda; as letras como a pintura vêm da minha alma e nascem quando menos espero: se apresentam, saem e não importa a hora ou o lugar. Com a escrita tenho a salvação da folha de papel; com a pintura, ela fica em mim como uma intranquilidade, como uma sede que só consigo saciar quando pego o pincel. E tampouco posso limitá-la a um horário preciso, nem a uma rotina. Quanto tento, não flui absolutamente nada.

Sim, as cores têm que ser brilhantes, as cores do arco-íris, do Caribe, da raiz africana que faz vibrar meu coração. Os abstratos são meus autorretratos, me vejo neles, neles estão minhas emoções; a explosão dos instantes de felicidade, de ira, de dúvida, de tristeza, todos os meus estados de ânimo, em uma explosão de cores sem forma precisa, sem alinhamento, livres, existindo por si mesmas, sem qualquer decoração ou estilo. Minhas telas, tal como meus escritos não são pensadas nem analisadas, são sentidas e emocionais. Voltar a me encontrar com meu primeiro amor tem sido uma carícia da vida que se empenha em abrigar-me dia a dia e mostrar-me qual é minha razão de ser.

Meu estúdio-quarto está cheio de quadros e telas amontoadas, um cavalete de principiante que começa a coxear de uma pata, uma janela que me permite viajar ao redor do mundo e através do tempo, um punhado de frascos com pincéis e quadros de matizes Mama África  e uma bruma de  teimosia que não me permite dar-me por vencida e me desafia a dizer que sim, que também sou pintora.

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Ilka Oliva Corado. @ikaolivacorado

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