A doméstica como escrava

Tradução do Revista Diálogos do Sul 
Serviçal, empregada, criada, doméstica, babá, diarista; a empregada doméstica é conhecida por uma infinidade de nomes. No entanto é a empregada mais importante e paradoxalmente a mais mal paga, a explorada e a escravizada em um modelo de sociedade que utiliza parias como trampolim; como escada, como o suporte mais importante para sustentar a exploração de uns para benefício de outros.
Infinidade de teorias, estudos, conceitos e definições podem ser escritos em tomos e mais tomos para justificar a existência da doméstica, mas esse trabalho não tem qualquer justificação; é a exploração de uma mulher para que a outra consiga o benefício da realização profissional e pessoal. Um sistema que milenarmente tem mantido esse modelo funcional para as minorias.

Graças a que estruturalmente tem-se negado o acesso à educação a parias, e a mulheres em particular, milhares de meninas, adolescentes e mulheres se vêem obrigadas a trabalhar no serviço doméstico, situação que beneficia muitas famílias da classe média, da burguesia e da oligarquia que em muitos casos não se importam com a equidade e a igualdade social, porque a sua ausência as beneficia.
E assim é como vemos feministas e defensoras de direitos humanos, que não estão excluídas do sistema e formam parte dele dizendo: “que culpa tem elas se já era assim quando nasceram; e para que lutar contra o sistema?” As vemos assistindo conferências, fazendo seminários sobre a equidade e os direitos da mulher, sobre o acesso à educação, enquanto em suas casas há outras cuidando seus filhos, limpando sua casa, passando sua roupa, limpando seus banheiros e lavando seu chão. Outra que graças ao sistema de exploração não ganha nem o salário mínimo e é carente dos benefícios trabalhistas.
E vemos como milenarmente, famílias completas conseguem se desenvolver, têm oportunidade de acesso à educação superior, enquanto outras lhes servem de suporte, de chão, de cobertor. Essa coberta suave que as cobre e vela seu sonho em troca da dor de ser explorada, insultada, tratada como um móvel velho, não como pessoa. Uma serviçal que não se cansa nunca, que nunca chora, que não tem dor alguma, uma empregada que não pensa, não vê, não escuta e não fala, só quando tem que dizer: sim senhora, sim patroa. Porque se sentir, escutar, falar, interagir como pessoa será despedida; por abusiva, por intrometida, por pensar que é igual. Por isso existe a empregada, por isso existe o trabalho das serviçais, porque são tumbas que além do mais limpam a sujeira de seus empregadores. E se vamos além, também são camas para esfriar os calores dos patrões, seus amigos e seus filhos.
Enquanto a patroa e suas filhas conseguem frequentar a escola, a universidade, desenvolver-se profissionalmente, a empregada doméstica apodrece entre quatro paredes, apodrece entre os pisos sujos e as panelas por lavar. Uma empregada doméstica que também tem sonhos, que também deseja, que também sente. Uma menina, uma adolescente e uma mulher que sonham em frequentar a escola, a universidade, mudar de vida. Mães que têm filhas que também serão empregadas domésticas, muitas vezes das filhas e das netas de suas patroas. Uma cadeia de injustiça social que beneficia umas e explora outras.
Por que quem, de posse dos seus cinco sentidos, quer trabalhar como empregada em lugar de frequentar a universidade e realizar seus sonhos? Quem trocaria uma sala de faculdade por uma escova para lavar banheiros? Quem trocaria um salário justo pela exploração de não ter direitos trabalhistas?
E vemos através da história do tempo o avanço que teve a mulher como gênero quando se coloca no foco as profissionais e as que saíram de casa para se desenvolver profissionalmente, mas ficam na obscuridade milhares de parias que são o suporte na invisibilidade da exploração. Existem realmente avanços em direitos de gênero? Talvez para umas, dependendo de sua condição social, Porque pária será pária em qualquer lugar.
Com isto não quero dizer em nenhum momento que o trabalho doméstico corresponda exclusivamente à mulher, não se trata de alimentar estereótipos, mas aqui o ponto é outro.
E vemos doutoras, engenheiras, docentes, jornalistas, feministas, escritoras, artistas, esportistas de alto rendimento, empresárias de sucesso e reconhecidas por seu humanismo e a excelência em seu trabalho, sucesso conseguido por esforço próprio e o suporte de uma menina, adolescente ou mulher que não pode se desenvolver porque sua condição de pária a obrigou a trabalhar no serviço doméstico. Injustiças da vida? do sistema? Como pode uma mulher se desenvolver profissionalmente, falar de humanismo e lutar em teoria pelos direitos de gênero tendo uma empregada doméstica em sua casa?Coisas do feminismo burguês? Coisas do aproveitamento do sistema? Coisas de dupla moral?
E como sabemos que nos males da sociedade, o do serviço doméstico é perene, é também urgente que se façam leis que as beneficiem no aspecto trabalhista. Que essas mulheres tenham o direito a um salário justo, férias pagas, todos os direitos que gozam os empregados de qualquer empresa, das licenças por doença, assistência médica. Do horário de entrada e saída com horas extras. Que tenham todos, todos os benefícios trabalhistas. É o mínimo que se pode fazer com pessoas tão importantes na sociedade. E é urgente também que deixe de existir a exploração infantil; essas meninas e adolescentes não deveriam estar trabalhando nas casas, deveriam estar estudando.
O que aconteceria com essas mulheres profissionais no dia em que for abolido a trabalho doméstico? Vão se organizar em casa com suas famílias e limparão sua própria merda? Duvido que isso chegue a acontecer, porque do serviço doméstico se aproveitam todos. E quem, em seu juízo perfeito quer perder privilégios? Oxalá algum dia na memória familiar e na memória coletiva sejam recordadas aqueles que nas sombras foram o suporte para o desenvolvimento de tantas mulheres através dos tempos.
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Ilka Oliva Corado @ilkaolivacorado contacto@cronicasdeunainquilina.wordpress.com

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